14.8.17

MIGUEL TAMEN


As páginas 70-71 do número 9 de 'O Occidente' são o lugar em que quem lesse o poema de Cesário Verde o leria, uma rua por assim dizer de cuja demolição sobreviveu uma única casa. Note-se que não existe indicação de qualquer relevo especial dado ao poema por editores ou contemporâneos. E conceda-se que muitos de nós, pelo simples facto de o ler agora, juraríamos que, caso fôssemos vivos em 1878, não deixaríamos de ter notado o seu fulgor, especialmente dada a baça vizinhança em que ele ocorre. É no entanto vão dar de nós próprios as melhores referências. Tal como não pudemos neste caso ter razão antes de tempo, apelar a qualidades que confirmam aquilo que já sabemos é tão frívolo como alegar que conhecíamos antecipadamente um número premiado da lotaria cujo bilhete inexplicavelmente não comprámos. E além disso o que os apelos ao fulgor apodíctico do poema de Cesário Verde nos oculta é precisamente a vizinhança em que o encontrámos. Tal vizinhança é porém reduzida pela historiografia à função teleológica de preparação, pela crítica estética à função decorativa de contraste, e por ambas à função de ilustração. Quanto mais admiramos o poema embalados por estas alternativas, portanto, menos percebemos como são confusas as explicações normalmente oferecidas para tal admiração.



(excerto de «A Caça à Ovelha», in Artigos Portugueses, Documenta, edição aumentada: 2015)


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